Mulheres que dançam com os traumas

Não deveríamos buscar propagar uma cultura pronta para a massa ignara. Devemos aceitar, com franqueza, que se propagarmos nossa cultura, nós a estaremos modificando: parte do que oferecemos será rejeitado, outra será objeto de crítica radical. E é assim que deve ser, pois nossas artes, agora, não estão em condições de continuar incontestadas até a eternidade (WILLIAMS, Raymond, 2015, p. 24).

            Eu tinha três anos e meu collant era roxo. O arranjo de cabelo florido era harmonicamente lilás, mas pouco funcional – com um corte chanel liso, lisíssimo, não há coque que suporte a gravidade. Minha história com o ballet é uma história comum, ou mesmo inarredável. Graças à ecografia, um destino assemelhado é traçado para quase todos os corpos que, na imagem prescritiva da ultrassonografia, sofrem a invocação performativa inaugural: “é uma menina!”. Essa declaração, segundo Judith Butler, está longe de ser mera descrição de fato dado. Trata-se de uma interpelação que produz aquilo que nomeia. Esse ato imperativamente fundador – “é uma menina!”, perceba a exclamação – determina uma série de outras práticas que devem ser continuamente reiteradas, recitadas, para que um sujeito “mulher” se torne possível dentro de uma estrutura epistemológica hegemônica. Uma vez paridas, vista-as de rosa, bote-lhes um laço na cabeça careca, fure-lhes as orelhas, dê-lhes barbies e kens, sente-as de pernas cruzadas, coloque-as para assistir A pequena sereia. E, claro, matricule-as numa aula de ballet. “É bom para corrigir posturas, aprender hierarquias e exercitar delicadezas”.

            O ballet não é apenas uma prática artística: é uma tecnologia sexual de conformação de corpos e de edificação de feminilidades. Como nos lembra Paul B. Preciado, o gênero não é uma ideia que recai sobre uma matéria passiva. Ele designa a produção de identidades bem delimitadas através da atuação de um conjunto de dispositivos sexopolíticos – as escolas, as instituições familiares, as representações midiáticas, as artes – que reiteram normas legitimadas de ser e estar no mundo. Além de se alicerçar na repetição inesgotável de pliés, relevés, battements e degagés, o ballet também se sustenta na repetição de regras gendradas. Para além de Giselles, Auroras, Odettes e Quitérias, quais mulheridades, então, o ballet nos arrebata a performar?

            Quando eu tinha uns dezessete anos, me lembro de um dia em que fazíamos um exercício para melhorar o arabesque – leigas, trata-se de elevar umas das pernas atrás do corpo; quanto mais alta a perna, melhor. A professora percorria a sala com olhar de lince, procurando por ângulos agudos. Eis que ela para diante de outra colega, forçando-lhe pelo menos os noventa graus: “Claro que você não consegue erguer a perna, tem uma bola de gordura enorme nas suas costas”, disse pejorativamente, ou algo do tipo. Não me senti angustiada ou penalizada pela diatribe desferida à menina; senti alívio porque o alvo de rejeição não era eu. O medo de desaprovação era maior que o senso de justiça. Talvez o ballet nos estimule a abandonar sororidades e a nos resignarmos diante de autoritarismos.  

Com dezoito anos, ganhei uma bolsa para estudar em uma escola de dança em Vancouver, no Canadá. Cheguei com cinquenta e dois quilos no outono norte americano de 2010, para atingir quase sessenta e cinco no Natal. Eu revezava dois collants puídos e evitava sair de casa para tentar me esquivar das roupas que não serviam mais. Dentro dos moletons largos que eu usava, claro que em vão, para esconder meu corpo de mim, assisti de casa melancólica e invejosamente a importante competição do Prix de Laussane em fevereiro de 2011, quando a bailarina brasileira Mayara Magri, hoje primeira-solista do Royal Ballet de Londres, foi consagrada na premiação. Eu tentava encontrar defeitos naquele corpo tão talhado para o ofício para que eu me sentisse melhor com o meu, desadaptado. Talvez o ballet nos oriente a ser nocivamente competitivas.

            Foi mais ou menos nessa época que meu professor me chamou em sua sala, para um tipo de conversa da qual a gente tenta se safar. Não me lembro dos pormenores do diálogo, mas ele disse algo sobre os meus pés inadequados, sobre a minha incapacidade de girar e sobre as “deformações” imputadas à minha figura pelos quilos a mais. Que ele antecipava minha derrota e não acreditava que eu teria futuro no ballet, apesar da oportunidade que me foi dada de estudar em sua escola, disso eu me lembro. A memória não falha diante de apoucamentos. Eu era bem-intencionada, mas boas intenções não adiantam se você não tem o pé arqueado.  Talvez o ballet nos faça odiar a própria imagem.

Incomodada com meu peso, que na época eu achava completamente abominável – veja só, sessenta e cinco quilos – retomei, no final de 2011, os piores hábitos da minha adolescência. Eu só comia biscoitos de arroz, espinafre, baby carrots e kani. Às vezes chupava uma toranja para acelerar o metabolismo. Induzia o vômito, que era uma moleza, e tomava muito café para surrupiar a fome. Mascava chicletes de canela até a mandíbula doer para poder mastigar alguma coisa inofensiva. Eu media meu sucesso envolvendo minha perna – naturalmente grossa, a diaba – entre os dedos do meio e o polegar. Se conseguisse fechar o círculo com folga, celebrava a finura da coxa. No processo de emagrecimento, comecei a ganhar mais papéis de destaque e passei nos summer school do Joffrey Ballet e da Gelsey Kirkland Academy, em Nova York.  O professor que havia praguejado o meu físico chegou a elogiar as linhas recém conquistadas com golfo e privação. Quanto atingi os quarenta e cinco quilos, porém, não houve celebrações. Eu fui humilhada, aos gritos, diante de toda a companhia canadense como se fosse irresponsável por trazer para aquele lugar imaculado a ameaça fantásmica da anorexia e da bulimia, assombrações que diretores sempre tentam exorcizar. Fui-me embora de Vancouver para ter meu corpo adoecido de magreza elogiado em outras terras. Talvez o ballet nos leve a naturalizar distúrbios alimentares e a nos sentirmos culpadas por tê-los.   

Tempos depois de ter pendurado as sapatilhas, eu dei aula de dança criativa em um projeto social e me arrisquei pela primeira vez como coreógrafa para uma turma de meninas de oito anos. Tentei fazer do processo um trabalho coletivo, elaborando movimentos a partir da inventividade das próprias crianças, e foi um barato. Elas estavam lindas no dia da apresentação; adoraram o figurino e a possibilidade de dançar sem a amarra capilar do coque. Entretanto, quando me dei conta, algumas dessas alunas estavam com as roupas molhadas. Perguntei sobre o que havia ocorrido e uma delas me respondeu que estavam tentando alisar os cabelos, crespos, com água da pia. Prontamente, tratei de dissuadi-las do processo elogiando e celebrando o formato natural dos fios. “Mas o seu cabelo é liso, professora” – lisíssimo, recordo. A interpelação de uma menina negra me fez reconhecer que a minha figura, branca, naquele contexto hierarquicamente delimitado, era muito violenta. Não porque pretendia ser, mas porque era a única que lhes aparecia, no momento, como referência. O ballet, seguindo a tradição aristocrática, europeia e colonialista que lhe deu origem, não se empenhou muito em abrir espaços para a negritude – a sapatilha é rosa, cara-pálida, para combinar com o tom de pele de quem?  Talvez o ballet faça meninas negras de oito anos acreditarem que dançar não é para elas.

Na rigidez regulamentar do ballet, também não cabem dissidentes de gênero. De malha, de tutu, na ponta, carregar ou ser erguide no porté: qual seria o lugar de um corpo trans ou travesti em uma técnica artística binariamente definida? É possível que uma garota que não passe por aquela invocação performativa inaugural – “é menina!” –, por que foi lida de outra forma – “é menino!” –, sonhe em se tornar uma etólie? Quais mulheres são produzidas como obscenas, impedidas de subirem aos palcos da inteligibilidade?  Talvez o ballet ratifique a impossibilidade ontológica de corpos fora da norma.

Eu tive que parar de dançar para ter coragem de me revoltar com o xingo alheio, para rejeitar submissões, para assistir, com gosto, outras pessoas dançando sem efetuar comparações destrutivas, para sentir prazer diante de um prato de arroz com feijão e para não odiar o corpo do qual eu, inevitavelmente, não posso escapar. Eu tive que parar de dançar para poder amar a dança de novo. Eu, entretanto, gostaria que aquelas e aqueles para quem a dança é indispensável, vital, continuamente inarredável, não precisassem recorrer ao afastamento. Primeiro, porque o ballet também nos possibilita aprender sobre responsabilidade, determinação, respeito, resiliência e superação. É capaz de proporcionar, também, as mais ferrenhas amizades, pois “amiga de ballet” é dos laços mais difíceis de romper, coisa de quem vai do céu ao inferno juntas. Segundo, porque o ballet é uma prática cultural viva que não pode se dar ao luxo de recusar transformações. Afinal, é possível, ou até mesmo desejável, permanecermos reverenciando as mesmas ideologias autoritárias, regimentares, brancas e heterocentradas da corte francesa do século XV? Ou iremos trazer para o ballet o ziriguidum dos trópicos, celebrando a revolução das lutas feministas, antirracistas, antigordofobia, anticolonialistas, anticapacitistas e LGBTQIA+ que sopram os ares dos novos tempos? Eu guardo meu arranjo de cabelo lilás, de quando tinha três anos de idade e um corte chanel, até hoje, com o carinho e a gratidão de quem ainda quer amar o ballet, apesar de tudo, e de quem acredita que, talvez, ele possa, com a potência de mulheridades dissonantes, se reinventar. 

Por Juliana Gusman

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

PRECIADO, P.B. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2017.

WILLIAMS, Raymond. A cultura é algo comum. IN: WILLIAMS, Raymond. Recursos da Esperança. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

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