O vírus surgiu e se espalhou, a realidade mudou e o mundo parou. No dia 26 de fevereiro fez um ano do primeiro caso no Brasil, mas não de quando fomos surpreendidos por uma pandemia de escala alarmante, que nos tornou reféns do medo, da angústia, da insegurança e muitas vezes, de nós mesmos. Fomos obrigados a nos distanciar de pessoas queridas, de modificar nosso cotidiano e por determinado tempo até de nos privarmos do “ar puro”. Muitos perderam empregos, familiares e esperança. Vivemos meses e meses de muita luta, descobertas, paciência, rezas e estudos, que culminaram em uma mudança drástica do modo de vida num geral.

A cultura foi um dos setores mais afetados com a pandemia, mostrando o quão desvalorizada é a arte, especialmente em nosso país. Artistas precisaram se reinventar diariamente para manter a “chama acesa” e as contas pagas. Teatros, casas de shows, galerias e cinemas foram fechados, exposições culturais proibidas e companhias/escolas de dança, pintura, fotografia e música tiveram suas atividades encerradas. Não foi um período fácil para ninguém, como viver sem a arte?

Eu, assim como muitos bailarinos profissionais e professores de dança, transformei minha casa em estúdio, modificando toda a estrutura da mesma. Sofás foram tirados do lugar, cadeiras e cômodas se transformaram em barras de ballet, garrafas serviram de apoio para o celular, aplicativos de reunião se tornaram nossos melhores amigos, contas de luz aumentaram, pacotes de internet se esgotaram e a criatividade foi trabalhada ao extremo. Precisei me adaptar a um espaço pequeno e limitado, assim como a um chão bastante escorregadio e impróprio pra a realização de saltos, além de ter adquirido uma barra de ballet nada barata que acabou se tornando parte da decoração da sala. Aprendi depois de muitos hematomas e utensílios quebrados a desviar de forma inteligente dos móveis da casa e perdi diversas meias/sapatilhas devido ao piso inadequado. Resumindo: precisei reaprender a dançar.

Porém, diante de tanto aprendizado, o uso da máscara foi, sem dúvida alguma, uma das maiores batalhas a serem vencidas. Controlar a respiração se tornou um grande obstáculo, uma vez que a força realizada para tal precisava ser redobrada. Fui me adaptando aos poucos durante o período que estive em quarentena completa, passando por momentos de falta de ar, desespero, diminuição do desempenho e sensação de cansaço mais frequente. A máscara afetou não só minha forma de respirar, como também meu equilíbrio num geral a partir do momento que a parte superior da mesma chegava próxima aos olhos afetando um dos pontos principais do equilíbrio: a visão.

Depois de muita adaptação, o novo dançar se tornou mais familiar e a arte começou a ser vista com outros olhos pelo mundo. O isolamento trouxe consigo a amplificação dos sentimentos, em especial os que se referem à tristeza, solidão e estresse. Muitos se viram acuados e sozinhos com seus conflitos internos, precisando daquilo que menos acreditavam necessitar: a arte. Capaz de influenciar nossa saúde física e mental, a arte veio ao mundo para salvá-lo, de modo a não só transmitir beleza estética como a interagir com nosso emocional. 

A possibilidade de ouvir uma música que gosta, de assistir a um filme memorável, de observar com encantamento fotos e vídeos de dança, de apreciar quadros e telas expostas na internet, tudo isso possibilitou que em meio a um período de tanta insegurança e medo, a calma, a perseverança e os sorrisos pudessem se fazer presentes. A arte salva e eu me vi fazendo parte dessa salvação. A chance de realizar espetáculos online trouxe de volta aquele sentimento que tanto se ausentava. Eu não estava mais diante de uma plateia física em um teatro lotado, não podia olhar a expressão de cada pessoa sentada à minha frente, mas assim mesmo pude sentir o prazer de expressar a minha arte, até porque ela agora pertencia ao mundo, tendo a possibilidade de ser transmitida para todo o globo.  

Apesar do retorno gradual às atividades presenciais, mantenho algumas de minhas aulas online e treinos diários no “conforto” e “desconforto” do meu lar-estúdio. Cada dia um desafio é superado e as pequenas conquistas passam a ser notadas a olho nu. A pandemia nos desestabilizou, mas também nos fez valorizar os pequenos momentos e gestos, as pessoas a nossa volta e as interações cotidianas. Nos tornamos mais fortes, superamos de pouquinho em pouquinho nossos medos e tivemos nossa sensibilidade aflorada. Criamos, recriamos, aprendemos e reaprendemos… nos reinventamos.

A dança se mantém sendo meu refúgio em meio aos dias turbulentos, me fazendo acreditar não só que sonhos ainda podem se tornar realidade como pessoas podem aprender a se respeitar e amar de forma genuína. “A arte existe porque a vida não basta” (Ferreira Gullar) e a vida só se torna completa quando nos entregamos de corpo e alma ao que acreditamos. Então, viva como se esse fosse seu último dia, mas acredite… o caminho ainda é longo, apesar das curvas.