A arte é inerente ao ser humano desde suas origens, contudo, a produção da arte é um desafio em um mundo capitalista, onde a falta de incentivo e valorização prevalece. Não obstante, o meio acadêmico também sofre com o constante corte de verbas e desvalorização. Neste palco ainda em blackout o bailarino pesquisador se questiona: “haverá espaço para as Ciências da Dança?” e a luz no fim do túnel se acende como um holofote, ou um farol do outro lado do oceano. E o jeitinho brasileiro é sair do Brasil, largar tudo para ir buscar lá longe o que não conseguimos produzir aqui, e voltar, carregando o peso do conhecimento na mala, correndo risco de ainda pagar imposto.

Ainda esperando a iluminação, mas ouvindo o murmurinho leve da plateia, o bailarino pesquisador se questiona: “vale a pena?”, então a música começa e o corpo se mexe sozinho e o questionamento desaparece pois não há nada como aquele momento em que o resultado de tanta dedicação aparece. Nada mais é importante! E o bailarino pesquisador quer apenas compartilhar.

É com muita alegria que o Bastidores apresenta a primeira Edição Especial “Diálogos entre a Ciência e a Dança” publicado no International Journal of Art, Culture and Design Technologies (IJACDT).


A revista científica pode ser acessada por meio deste link https://www.igi-global.com/journals/abstract-announcement/185287. Abaixo segue a tradução da nota editorial para que saibam os conteúdos de cada artigo publicado nesta edição especial.

Bárbara Pessali-Marques – Bastidores – Dança, Pesquisa e Treinamento

Nos últimos anos a preocupação com a saúde na dança e as consequências do treinamento físico para bailarinos aumentaram consideravelmente. Tanto o conhecimento sobre as necessidades físicas requisitadas na dança quanto o tipo de treinamento necessário para obter o melhor desempenho e diminuir a grande taxa de lesões tem despertado a necessidade de uma abordagem mais científica, ou seja, por meio do advento das Ciências da Dança. Além disso, é importante considerar que coreógrafos têm adotado movimentos cada vez mais atléticos (Koutedakis, Hukam, Metsios,& Nevill, 2007) que, concomitantemente com o aumento da quantidade de fatores estressantes, internos e/ou externos, enfrentados pelos bailarinos, podem contribuir para a ocorrência de desequilíbrios físicos e psicológicos (Noh, Morris, & Andersen, 2003). Desafios como a dificuldade para a obtenção de uma vaga em companhias profissionais ou a pressão por desempenho em competições e concursos podem ocasionar a elevação dos níveis de cortisol (Rohleder, Beulen, Chen, Wolf, & Kirschbaum, 2007), bem como síndromes do overtraining e burnout (Koutedakis, 2000) como consequências desses desequilíbrios. Portanto, o estudo abrangente da carga e das restrições impostas ao corpo dos bailarinos (Angioi, Metsios, Koutedakis,& Wyon, 2009; Bennell et al., 1999) é necessário para diminuir o risco de lesões e ajudar a melhorar o desempenho possibilitando a execução de uma variedade de movimentos (Angioi, Metsios, Twitchett, Koutedakis, & Wyon, 2009; Bennell et al., 1999).

Alguns estudos foram publicados considerando as especificidades dos bailarinos, a maioria, no entanto, foram publicados em revistas das ciências do esporte, uma vez que periódicos científicos específicos para a dança são raros ou inexistentes, principalmente considerando a necessidade de construir conexões entre diferentes disciplinas considerando o bailarino um ser humano completo. Ao mesmo tempo, existe uma lacuna a ser preenchida de forma que o conhecimento científico alcance além da comunidade acadêmica atingindo os bailarinos e os profissionais que trabalham com eles.

As Ciências da Dança é um campo recente que vem se desenvolvendo nos últimos 20 anos através de pesquisas realizadas envolvendo profissionais em áreas como educação física, fisioterapia, medicina, educação, psicologia, nutrição, dança, entre outras. Alguns dos objetivos das Ciências da Dança são manter o bem-estar geral e a saúde dos bailarinos, promover o treinamento e o desenvolvimento das capacidades físicas e prolongar a carreira dos mesmos. Devido a necessidade de mais conexões entre as áreas que integram as Ciências da Dança a edição especial “Diálogos Entre a Ciência e a Dança” foi proposta. A intenção desta edição especial é examinar compreensivamente as necessidades dos bailarinos como um ser humano completo, reduzindo a lacuna entre a teoria científica e a prática da dança e, ao mesmo tempo, combinando o conhecimento existente sobre dança com uma compreensão e princípios científicos para melhorar a situação profissional dos bailarinos e professores de dança e incentivar mais estudos na área.

A edição especial também traz uma nova abordagem multidisciplinar para as Ciências da Dança com base em alguns princípios. Em primeiro lugar, o bailarino não é um atleta; uma vez que esta população responde distintamente quando comparada a não-bailarinos e atletas de modalidades esportivas (Nielsen, Crone, & Hultborn, 1993; Pessali-Marques, 2015). Além disso, a “dança” não pode ser considerada apenas uma modalidade; de fato, há muitos estilos (por exemplo, balé clássico, contemporâneo, dança do ventre, dança de salão, dança urbana…) que exigem capacidades diferentes umas das outras (Wyon et al., 2011). Em segundo lugar, dois repertórios em cartaz na mesma temporada, ou a posição que um bailarino executa na companhia, podem exigir capacidades físicas diferentes dos bailarinos integrantes da mesma companhia de dança (Twitchett, Angioi, Koutedakis, & Wyon, 2010).

Em terceiro lugar, a maioria dos testes demandam o desenvolvimento de equipamentos para avaliar as capacidades específicas dos bailarinos (Pessali-Marques, 2016). E, finalmente, nem o bailarino como ser humano deve ser fragmentado e estudado separadamente, quanto a arte deve ser separada da ciência. Embora os estudos científicos exijam certo nível de fragmentação para permitir especialização (Siegler, Biazzin, & Fernandes, 2014) e o melhor entendimento das partes objetivando a compreensão do todo, durante a performance, movimentos biomecânicos, respostas fisiológicas e características psicológicas afetam o bailarino concomitantemente, influenciando-o de uma maneira diferente do que aconteceria em um ambiente laboratorial controlado. Além disso, algumas experiências no palco não são reproduzíveis em laboratórios; não é só o corpo que afeta a dança, a dança também afeta o corpo.

Através da avaliação científica as fraquezas e forças individuais e/ou coletivas são identificadas e intervenções adequadas podem ser desenvolvidas, para cada um separadamente e todos ao mesmo tempo, os aspectos acima mencionados. Cada pessoa possui sua individualidade: sexo (Cohen, Segal, & McArdle, 1982), idade, nível de treinamento, quantidade de treinamento executado (Kirkendall et al., 1984), tipo de treinamento, estilo de dança praticado e, características emocionais, sendo todos esses componentes importantes a serem considerados durante uma avaliação.

Os colaboradores desta edição especial são profissionais internacionais, especialistas e acadêmicos em diferentes campos de pesquisa com experiência em dança, visando estabelecer conexões culminando na construção de um modelo multidisciplinar de referência para a dança. Este material será acessível para bailarinos, professores, pesquisadores, todos os profissionais que trabalham com bailarinos e qualquer pessoa a quem a dança possa interessar.

Neste sentido, o primeiro artigo apresenta a Rede de Medicina e Ciência da Dança Brasil-UK(BR-UK) como um lugar potente para a criação poética e de pesquisa criativa. O artigo descreve as ações e o objetivo principal da rede: desenvolver pesquisa e serviços colaborativos entre universidades, instituições privadas e pesquisadores independentes nas áreas das Ciências da Dança, estabelecendo caminhos transdisciplinares para o avanço científico.

O segundo artigo revisa a literatura para avaliar a dança como uma atividade de reabilitação cardíaca, considerando suas demandas físicas, socioculturais e os efeitos relacionados a prática regular de diferentes modalidades de dança na saúde e qualidade de vida de pacientes cardíacos. Este trabalho destaca a relação multidirecional entre a dança e a saúde corporal.

O terceiro artigo oferece diferentes perspectivas sobre o mesmo tópico: a criatividade. Argumentos a favor de um maior foco nas demandas criativas da dança, dentro das Ciência da Dança, são ressaltados, bem como os desafios e barreiras para a pesquisa na psicologia da criatividade na dança. Por fim, os autores fornecem uma série de recomendações para incentivar o crescimento desta importante área de pesquisa.

O último artigo avalia o efeito de um programa de treinamento resistido na rotação externa (en dehors) passiva e ativa do quadril em um grupo de bailarinos. Os autores estudaram os efeitos de um programa de treinamento específico desenvolvido de acordo com as necessidades dos bailarinos (o Best Performance and Movement®); os resultados foram analisados individualmente, em um estudo de caso múltiplo.

A grande diversidade dessas discussões e o amplo escopo reunido nesta edição especial busca um diálogo que diminua as fronteiras entre a Ciência e a Dança.

Bárbara Pessali-Marques

Editor Convidado

International Journal of Art, Culture and Design Technologies (IJACDT)

REFERÊNCIAS

Angioi, M., Metsios, G. S., Koutedakis, Y., & Wyon, M. A. (2009). Fitness in contemporary dance: a systematic review. International Journal of Sports Medicine, 30(7), 475-484. doi: 10.1055/s-0029-1202821

Angioi, M., Metsios, G. S., Twitchett, E., Koutedakis, Y., & Wyon, M. (2009). Association between selected physical fitness parameters and aesthetic competence in contemporary dancers. Journal of dance medicine & science, 13(4), 115-123.

Bennell, K., Khan, K. M., Matthews, B., De Gruyter, M., Cook, E., Holzer, K., & Wark, J. D. (1999). Hip and ankle range of motion and hip muscle strength in young female ballet dancers and controls. British Journal of Sports Medicine, 33(5), 340-346.

Cohen, J. L., Segal, K. R., & McArdle, W. D. (1982). Heart Rate Response to Ballet Stage Performance.The Physician and Sportsmedicine, 10(11), 120-133. doi: 10.1080/00913847.1982.11947374

Kirkendall, D., Bergfeld, J., Calabrese, L., Lombardo, J., Street, G., & Weiker, G. (1984). Isokinetic characteristics of ballet dancers and the response to a season of ballet training. Journal of Orthopaedic & Sports Physical Therapy, 5(4), 207-211.

Koutedakis, Y. (2000). " Burnout” in Dance: the physiological viewpoint.

Koutedakis, Y., Hukam, H., Metsios, G., & Nevill, A. (2007). The effects of three months of aerobic and strength training on selected performance-and fitness-related parameters in modern dance students. Journal of Strength and Conditioning Research, 21(3), 808.

Nielsen, J., Crone, C., & Hultborn, H. (1993). H-reflexes are smaller in dancers from The Royal Danish Ballet than in well-trained athletes. European journal of applied physiology and occupational physiology, 66(2), 116-121. doi: Doi 10.1007/Bf01427051

Noh, Y. E., Morris, T., & Andersen, M. B. (2003). Psychosocial stress and injury in dance. Journal of Physical Education, Recreation & Dance, 74(4), 36-40.

Pessali-Marques, B. (2015). Comparação do efeito agudo do alongamento dos músculos posteriores da coxa nas variáveis biomecânicas e na primeira sensação de alongamento em adultos jovens treinados e não-treinados em flexibilidade. (Mestrado Dissertacao), Universidade Federal de Minas Gerais, Biblioteca da Escola de Educacao Fisica, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG.

Pessali-Marques, B. (2016). A Comparison of different equipment used to measure and train flexibility. Revista Movimenta, 9(4), 653-658.

Rohleder, N., Beulen, S. E., Chen, E., Wolf, J. M., & Kirschbaum, C. (2007). Stress on the dance floor: the cortisol stress response to social-evaluative threat in competitive ballroom dancers.Personality and Social Psychology Bulletin, 33(1), 69-84.

Siegler, J., Biazzin, C., & Fernandes, A. R. (2014). Fragmentação do conhecimento científico em administração: uma análise crítica. RAE-Revista de Administração de Empresas, 54(3), 254-267.

Twitchett, E., Angioi, M., Koutedakis, Y., & Wyon, M. (2010). The demands of a working day among female professional ballet dancers. Journal of dance medicine & science, 14(4), 127-132.

Wyon, M. A., Twitchett, E., Angioi, M., Clarke, F., Metsios, G., & Koutedakis, Y. (2011). Time motion and video analysis of classical ballet and contemporary dance performance. International Journal of Sports Medicine, 32(11), 851-855.